Ela
entrou pela porta dos fundos. Tinha a impressão de que se fizesse pouco barulho
poderia entrar e sair sem ser vista, afinal eram três da manhã. Um pé após
outro, cautelosamente adentrou à sala, mas era desnecessário desanunciar-se.
Ele estava acordado.
-
Desculpe, achei que você estivesse dormindo.
- Você
poderia vir de manhã, depois que eu já tivesse saído, se não quisesse mesmo me encontrar.
- Eu
sei. Mas estou mesmo precisando de
algumas das minhas coisas.
- Eu não
quis ser rude. Quis dizer que tudo bem você vir aqui e eu estar acordado.
- Eu
sei.
Como
dois estranhos que se cruzam em uma prateleira de supermercado e disputam algo
trivial, como um pacote de biscoitos. Foi assim que eles se sentiram durante
aquela conversa incômoda, às três da manhã. Quantas vezes em sete anos
estiveram acordados até as três da manhã, porque tinham assunto demais e tempo
de menos! E agora precisavam procurar as palavras certas, para garantir que de
fato, pudessem trocar pelo menos duas ou três frases inteiras.
Enquanto
subia para o quarto com a mala vazia, ela se lembrou das vezes em que ele
esperava por ela ao pé da escada, sempre que iam sair e do olhar de espanto que
ele fazia, fosse qual fosse a roupa que ela vestisse. Todas as vezes era como
se ele estivesse olhando para ela pela primeira vez. Mas depois de alguns anos,
ela teve a impressão de que ele fazia isso pela mera obrigação de ser um bom
marido e deixou de usar belos vestidos, só para ter certeza de que era
automático. E ele deixou de chamá-la para sair porque achou que ela não
gostasse mais da companhia dele, já que não fazia questão de se vestir como se
estivesse indo para um encontro.
E por
acharem demais e conversarem de menos, de repente se tornaram dois
desconhecidos tendo um diálogo gélido, às três da manhã, na mesma sala em que
antes traçavam os planos de férias e a reforma do banheiro, ao som de Nina
Simone. Mas ele estava mais triste, pelo simples fato de que por ele, tudo bem
se ela não quisesse mais se arrumar para sair ou se preferisse ficar em casa. Desde
que ela estivesse ali, ele poderia se acostumar com algo que não fosse igual ao
dia em que saíram da igreja casados. Só que para ela, meio amor já não servia mais.
-
Consegui alguém para buscar o resto das coisas, mas ele só pode na semana que
vem, pode ser?
- Pode. Mas
você sabe o que eu penso sobre isso. É ridículo que você saia da casa. Se vamos
mesmo fazer isto, é você quem deveria ficar.
- Não,
não me sinto no direito. Você desenhou cada canto desta casa com tanto carinho,
que seria maldade da minha parte tirar você daqui.
- É, mas
eu desenhei ela para você, para nós. Sem a gente aqui, ela vai ser só mais um
dos meus projetos.
- Nós já
falamos tanto sobre isso, não sei por que você ainda insiste.
- É
porque ontem eu assisti aquele filme que você me pediu tantas vezes para ver e
eu fui deixando...
- Qual
deles?
- Like
Crazy.
- Sei...
- E aí a
Ana escreveu algo para o Jacob, no livro do amor, que mexeu comigo.
- E o
que foi?
- Ela
escreveu: “Quando Jacob se for, com que
olhos vou comparar a luz do sol, ao amanhecer?”. E eu me dei conta de que
quando você não estiver mais aqui, muitas das coisas que eu considero sublimes
perderão todo o sentido. E eu não vou saber o que fazer com elas.
- Eu
sinto muito, de verdade. Eu sinto muito por você ter visto isso tão tarde. E eu
sinto muito porque nós éramos um projeto muito promissor. E eu sinto mesmo,
muito, porque nada do que você diga, agora, vai me fazer querer ficar.
- Eu
sei. Mas eu queria que você soubesse...
Quando ela
fechou a porta atrás de si ficou pensando em como alguém que ela havia amado
tanto, com tanta intensidade, poderia agora ser um completo estranho e em como
ela poderia desejar tanto estar em outro lugar, se tudo o que ela quis por
tantos anos foi estar exatamente ali, como se não existisse outro lugar no
mundo. E quando ela fechou a porta, tudo o que ele conseguiu pensar foi em como
conseguiu ficar todo tempo ao lado daquela mulher, sem saber que a amava
tanto. E dificilmente depois disto vai haver no mundo uma mulher que se sentiu
tão livre e um homem que se sentiu tão triste, exatamente às três da manhã.