domingo, 23 de setembro de 2012

Três da Manhã (Crônica)


Ela entrou pela porta dos fundos. Tinha a impressão de que se fizesse pouco barulho poderia entrar e sair sem ser vista, afinal eram três da manhã. Um pé após outro, cautelosamente adentrou à sala, mas era desnecessário desanunciar-se. Ele estava acordado.
- Desculpe, achei que você estivesse dormindo.
- Você poderia vir de manhã, depois que eu já tivesse saído, se não quisesse mesmo me encontrar.
- Eu sei. Mas estou mesmo precisando de algumas das minhas coisas.
- Eu não quis ser rude. Quis dizer que tudo bem você vir aqui e eu estar acordado.
- Eu sei.
Como dois estranhos que se cruzam em uma prateleira de supermercado e disputam algo trivial, como um pacote de biscoitos. Foi assim que eles se sentiram durante aquela conversa incômoda, às três da manhã. Quantas vezes em sete anos estiveram acordados até as três da manhã, porque tinham assunto demais e tempo de menos! E agora precisavam procurar as palavras certas, para garantir que de fato, pudessem trocar pelo menos duas ou três frases inteiras.
Enquanto subia para o quarto com a mala vazia, ela se lembrou das vezes em que ele esperava por ela ao pé da escada, sempre que iam sair e do olhar de espanto que ele fazia, fosse qual fosse a roupa que ela vestisse. Todas as vezes era como se ele estivesse olhando para ela pela primeira vez. Mas depois de alguns anos, ela teve a impressão de que ele fazia isso pela mera obrigação de ser um bom marido e deixou de usar belos vestidos, só para ter certeza de que era automático. E ele deixou de chamá-la para sair porque achou que ela não gostasse mais da companhia dele, já que não fazia questão de se vestir como se estivesse indo para um encontro.
E por acharem demais e conversarem de menos, de repente se tornaram dois desconhecidos tendo um diálogo gélido, às três da manhã, na mesma sala em que antes traçavam os planos de férias e a reforma do banheiro, ao som de Nina Simone. Mas ele estava mais triste, pelo simples fato de que por ele, tudo bem se ela não quisesse mais se arrumar para sair ou se preferisse ficar em casa. Desde que ela estivesse ali, ele poderia se acostumar com algo que não fosse igual ao dia em que saíram da igreja casados. Só que para ela, meio amor já não servia mais.
- Consegui alguém para buscar o resto das coisas, mas ele só pode na semana que vem, pode ser?
- Pode. Mas você sabe o que eu penso sobre isso. É ridículo que você saia da casa. Se vamos mesmo fazer isto, é você quem deveria ficar.
- Não, não me sinto no direito. Você desenhou cada canto desta casa com tanto carinho, que seria maldade da minha parte tirar você daqui.
- É, mas eu desenhei ela para você, para nós. Sem a gente aqui, ela vai ser só mais um dos meus projetos.
- Nós já falamos tanto sobre isso, não sei por que você ainda insiste.
- É porque ontem eu assisti aquele filme que você me pediu tantas vezes para ver e eu fui deixando...
- Qual deles?
- Like Crazy.
- Sei...
- E aí a Ana escreveu algo para o Jacob, no livro do amor, que mexeu comigo.
- E o que foi?
- Ela escreveu: “Quando Jacob se for, com que olhos vou comparar a luz do sol, ao amanhecer?”. E eu me dei conta de que quando você não estiver mais aqui, muitas das coisas que eu considero sublimes perderão todo o sentido. E eu não vou saber o que fazer com elas.
- Eu sinto muito, de verdade. Eu sinto muito por você ter visto isso tão tarde. E eu sinto muito porque nós éramos um projeto muito promissor. E eu sinto mesmo, muito, porque nada do que você diga, agora, vai me fazer querer ficar.
- Eu sei. Mas eu queria que você soubesse...
Quando ela fechou a porta atrás de si ficou pensando em como alguém que ela havia amado tanto, com tanta intensidade, poderia agora ser um completo estranho e em como ela poderia desejar tanto estar em outro lugar, se tudo o que ela quis por tantos anos foi estar exatamente ali, como se não existisse outro lugar no mundo. E quando ela fechou a porta, tudo o que ele conseguiu pensar foi em como conseguiu ficar todo tempo ao lado daquela mulher, sem saber que a amava tanto. E dificilmente depois disto vai haver no mundo uma mulher que se sentiu tão livre e um homem que se sentiu tão triste, exatamente às três da manhã.