quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O ter, o ser e a campainha do apartamento 1

Faz tempo que não tenho inspiração para escrever. Sim, eu espero a inspiração. Não tenho força criativa suficiente para jorrar palavras. Admiro quem tem, quase invejo. Mas eu preciso de situações e novas leituras. Ambas, bem casadas, me fazem escrever. Vamos a elas.
Moro em uma das maiores cidades do mundo, onde cada pessoa é sim, uma ilha. São Paulo é o lugar que conheço, embora conheça poucos mesmo, onde cada pessoa vive exclusivamente para si, no pior sentido que a frase possa ter.
Um bom exemplo disso é o casal que mora no apartamento 1, bem ao lado do meu. Se por alguma infelicidade você precisar tocar a campainha deles, esqueça. Eles não atendem. A recenseadora do IBGE tocou o interfone deles e nada. O entregador de água tocou o interfone, para afinal, entregar a água que eles pediram e nada. Eu já toquei a campainha, em caso de urgência e nada. Devem ser surdos – pensei - mas não são. Eles conversam entre si e embora o volume de voz indique surdez é apenas falta de noção mesmo.
Não bastasse isso, o homem toca saxofone (muito mal, diga-se de passagem) o dia inteiro. Não é hipérbole. É o dia inteiro mesmo. É um alívio quando o telefone deles toca, uma breve pausa. Quase me faz gostar de Kenny G, imagine só. E isso me faz pensar que eles vivem como se sozinhos fossem no prédio, na comunidade, na vida. Sequer chegam ao questionamento de que pode haver alguém incomodado. Para eles, “alguém”, simplesmente não existe. Triste não é?
Enfim, como eles há milhares espalhados pelo mundo. Talvez eu pudesse tentar ser mais branda e pensar que no meio de tantas possibilidades, eles são pessoas alternativas. Mas não são, infelizmente. Eles são surdos-mudos sociais, o que me faz sentir aquela sensação terrível de pena. Porque até os fisicamente surdos aprendem a “ouvir”. Mas os surdos sociais dificilmente atingirão essa compreensão.
E se analisarmos as mutações sociais ocorridas no mundo, suas revoluções, suas guerras, seus ajustes e as diferentes necessidades de cada época, percebemos que isso não é apenas reflexo do tempo em que vivemos. É assustador, mas é um novo modo de vida – que exclui e marginaliza tudo o que está fora de “mim”. Nunca os pronomes eu, meu e mim fizeram tanto sentido quanto neste século.
E aí me peguei tendo o seguinte pensamento: perdemos muito mais tempo preenchendo o ter do que o ser. E no ter definitivamente não há espaço para o outro. No ser sim, há um imenso campo de futebol para várias partidas simultâneas. Mas o ter é escuro e vazio.
A lógica do consumo cria uma necessidade absoluta em mim, de algo sem o qual consegui viver desde sempre, mas que já não posso mais. Então preciso trabalhar mais, produzir mais, me conectar mais, para estar mais perto do tão precioso objeto. Quando consigo comprá-lo, já está obsoleto e começa tudo outra vez.
Aí penso que o raciocínio pode ser muito simplista. Mas a Viviane Andrade Pereira, que escreveu o livro “Corpo ideal, peso normal – transformações na subjetividade feminina” concorda comigo. Já são duas pessoas, não deve ser tão simplista assim. Ela disse: “Consumir é uma atividade presente em todas as sociedades humanas. Atualmente consumimos para satisfazer as nossas necessidades básicas, mas também as necessidades de identificação, status, pertencimento e gratificação individual. O consumo aponta para uma reflexão acerca da sociedade em que vivemos e sobre quem somos”. Brilhante.
Então para resumir a questão, a problemática é essa: nos aproximamos virtualmente, pela globalização tecnológica e os processos que ela implica; geograficamente, por causa da explosão demográfica; e nos afastamos socialmente, porque estamos concentrados demais naquilo que precisamos ter, em detrimento do que precisamos ser. Existe solução pra isso? No campo teológico sim. Mas pra quem ignora essa esfera, só me resta recorrer à filosofia dos parachoques de caminhão: “depois, não diga que eu não avisei”.

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